n. 4 . peitopensar
O corpo — obra acurada e contínua, imagem viva da cooperação de milhões de células, moléculas, átomos, vibrações infinitesimais que, através de um tecido infindável de relações, de um sempre dar e receber, mantêm sua coexistência como um, e atravessa a vida sustentado por tal princípio.
Um princípio coesivo, cooperativo, amoroso, que, em toda a natureza, animal, vegetal, microscópica, mineral e multiplanetária, sempre está a operar em alguma de suas infinitas faces (incluindo as faces mais ferozes) — decerto me parece justo, senão básico, entendê-lo como uma inteligência. A primeira inteligência, a que gerou todas as outras.
Me pergunto quanto desafino, quanta incoerência pesadamente sustentada, quanto caos não poderia ser e talvez sejam gerados pelo não reconhecimento dessa inteligência básica e omnipervasiva. O quanto que considerar que há uma outra inteligência que é mais ou é a única — a inteligência discursiva, lógica — não é o que faz com que alguns seres sejam vistos como sendo mais seres que outros, que a humanidade seja reduzida a uma pequena parcela de humanos descolados do chão e, assim, que se desprezem modos de viver, e que se dizimem povos, e que se matem rios e montanhas, e que se devore a Terra.
Por esse motivo, em um momento onde o tamanho do desespero é desnorteante, e facilmente nos engole e esgota, reconhecer essa inteligência e reaprender a acessá-la naturalmente — tornar a própria consciência inseparada da inteligência incondicional da realidade — talvez seja algo que pode ser feito aqui e agora para transformar as causas do colapso e empurrar para cima o céu.
“a gente desperta de dentro de nós essa vitalidade que nós ganhamos quando nós chegamos aqui na Terra como semente. […] Que maravilha que nós podemos despertar, de dentro de nós, vida, saúde, e afetar quem está ao nosso redor com esse Do-in que começa em algum lugar dentro de mim mesmo e que, como uma onda criativa, se difunde por tudo ao nosso redor. Cura o peito do céu, cura o lugar onde nós estamos.”
Não é de se espantar que, ao buscar qual poderia ser a casa deste princípio na cartografia do corpo, onde ele mais claramente reverbera em forma e símbolo, espontaneamente apontemos — em um gesto consoante à sabedoria de tantas tradições — para o coração. Que rege o pulso da troca e portanto o pulso da vida, que oferta a todas as partes o grande solvente através do qual a cooperação se torna possível, através do qual as partes se tornam todo. E este pulso ressoa em um campo eletromagnético 60 vezes maior que o do cérebro, tornando-o substância desnuda de interação direta com a vida, e transformando todo o mundo externo em um campo de afetos — um constante afetar e afetar-se por. E assim seu sumo a todos penetra e por todos é ofertado e, nesse sempre circular, faz-se compreender que a pulsação não se diferencia daquilo que pulsa, que a inteligência primordial é imanente à matéria onde opera.
Por isso, é imprescindível retomar o coração como órgão de percepção, perceber no seu calor, no seu ritmo, na sua permeabilidade, e abertura, e sensibilidade e dor e ternura, a presença de uma cognição milhares e milhões de vezes mais antiga e mais vasta que os ângulos retos das narrativas do córtex pré-frontal.
Retomar, reacessar — é algo que está muito perto, completamente disponível, na memória da grande árvore de ancestrais que segue impressa em cada corpo como veias-nervuras-artérias, que está gravado na língua porque também a língua emerge desse mesmo princípio primordial dos afetos — e também a língua trabalha pelo contato, deslocando padrões e tornando mais permeável, maleável e aberto aquilo que todos os seres envolvidos poderiam chamar de “eu”. Reativar o pulso da palavra.
Nokẽ chinã, ‘nosso peitopensar’ ou, na primeira pessoa, ẽ chinã-namã (1sGEN peitopensar-LOC, ‘em meu peitopensar’), designa por sua vez uma dimensão localizada no peito que não é porém o próprio peito (shotxi) ou o coração (oĩti) físicos, mas algo como um espaçopensamento, ‘dentro de meu peitopensar’. Pensar é, a rigor, uma tradução insatisfatória para o amplo espectro da noção de chinã, traduzível também como ‘vida’ ou ‘princípio vital’ e estranha à maneira ocidental de conceber a relação entre mente e mundo. A noção envolve uma referência espacial, na qual reside a coletividade de duplos habitantes da pessoa marubo, responsáveis, em larga medida, pela performance intelectual da pessoa que os abriga. Por vezes, chinã ‘princípio vital’ será indicado pela pulsação das artérias nos antebraços; noutras, é desenhado nestes mesmos locais como uma pessoa, portando suas lanças e cocares de pena.
Pedro Cesarino, Oniska.
Reativar o peitopensar. E reativar thymos (grego antigo, coração / amor / vontade / mente / pensamento). E ib (egípcio, coração / vontade / mente). E 心 (xin em chinês, kokoro em japonês, coração / mente / pensamento / intenção). São todas palavras cuja própria existência me reforçam o perceber e sentir e acreditar que a inteligência do coração não é mero ornamento, tampouco signo cifrado, muito menos obstáculo. É estado básico de ser, obra acurada e contínua, tal como o corpo, ininterruptamente formando-se, reformando-se, transformando-se através do amor.
A filosofia enuncia o mundo nas imagens das palavras. Ela precisa surgir no coração a fim de mediar verdadeiramente o mundo, já que, como diz Corbin, é aquele órgão sutil que percebe as correspondências entre as sutilezas da consciência e os níveis do ser. Essa capacidade de compreensão acontece por meio de imagens que são uma terceira possibilidade entre mente e mundo. Cada imagem coordena em si mesma qualidades de consciência e qualidades do mundo, falando em uma e na mesma imagem de interpenetração de consciência e mundo, mas sempre e apenas como imagem; imagem que é primária àquilo que coordena. Essa inteligência imaginativa reside no coração: "inteligência do coração" significa um conhecer e um amar simultâneos por meio do imaginar.
James Hillman, O pensamento do coração e a alma do mundo
Assim sonhar a Terra: em um conhecer e um amar simultâneos por meio do imaginar.
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