Oi, aqui é a Marina e esta é sonhar aterra, uma newsletter para viver o fim do mundo que passa a existir agora — este momento compartilhado entre o agora enquanto escrevo e o agora em que você lê. Muito obrigada por fazer parte deste começo 🤍
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Ah: nada aqui é meu. Tudo já foi dito por muitas vozes em incontáveis faces, mas me parece importante seguir tecendo, compostando, ressoando junto. Que, de alguma forma, possa fazer sentido pra você também.
Sinta-se em casa :)
O fogo devora de novo as florestas, você viu? E os campos e pantanais e cerrados. As labaredas lambendo o chão que formou e recebeu os ossos dos seus ancestrais — talvez você já tenha visto, talvez veja em breve. Uma ou outra proteína do seu corpo pode tentar buscar de alguma forma essa memória ancestral, antecipando-se à sensação iminente de estar cozinhando por dentro. E os pulmões pesados, já sentiu? Um peso que não acaba junto com o vírus, um peito que segue sentindo o peso da dor do mundo, sentindo o peso dos pulmões dos pássaros incrustados de fuligem. Já ouviu o último canto de um pássaro extinto? — talvez você até já tenha ouvido sem nem se dar conta disso. Talvez ouça em breve.
É o fim do mundo. Para algumas pessoas, as consideradas balburdiosas e disruptivas, uma quase certa extinção da humanidade é um processo a caminho. Para outras, bilhões e bilhões de seres de todas as espécies continuarão morrendo em um colapso irreversível. Mesmo o cenário mais conservador de uma assembleia de especialistas historicamente conservadora diz que, no mínimo, vai piorar bastante. É o fim do mundo. Não é o fim da realidade, também não será o fim da vida. Mas certamente é o fim de pelo menos um mundo, aquele no qual um futuro melhor que o presente era sempre a promessa básica, onde, para quem viveu nele, o conforto sempre esteve garantido pela evolução tecnológica proporcionada pelo crescimento econômico infinito.
A realidade é clara, é o fim do mundo. E a existência de tantos que desviam dessa constatação de forma cada vez mais passional não a contradiz, pelo contrário — revela que a realidade se ergue sobre o mundo e o ilumina e por ele irradia como um sol imparcial. E qualquer conceitualização que ignore o calor do Sol e a materialidade da Terra, qualquer ignorância e negação da realidade, só poderá se sustentar nos cantos mais extremos, escuros e inóspitos da mente.
Aproximar-se desses poucos lugares para onde ainda parece ser possível fugir — lugares cujos nomes variam de “Marte” a “metaverso” — sempre requer distanciar-se da realidade, tirar os pés do chão, sair da Terra. Operando cada vez mais desaterrada, a ignorância segue gerando narrativas sem base, que criam entidades como “o Mercado” e “o Algoritmo”, e estas manipulam a realidade até serem confundidas com alguma memória de chão e passarem a fundamentar, nutrir e sustentar as próximas criações. E a normalização da desconexão segue atingindo novos extremos.
O pensamento linear individual, com suas categorias “salvar” ou “condenar”, “resolver” ou “descartar”, não oferece resposta. Parece ser um desses casos em que a visão que gerou o cenário não é capaz de desatá-lo. Com essa visão, o mundo não tem volta nem saída. “É um fim morto”, diriam em inglês.
É assim que, “como um cego que encontrou / uma pedra preciosa em um monte de terra / exatamente assim, como se por algum estranho acaso1”, imaginar outros mundos emerge como caminho possível. E nos vários lugares onde surge, tudo se ilumina e energiza. Uma centelha da inteligência da Vida. O canto de um pássaro extinto que segue ecoando em outros cantos do mesmo organismo-Gaia.
Imaginar outros mundos, esperança. Uma forma de sair do sequestro, como disse Eliane Brum. Portanto algo que deve ser reivindicado como direito básico. Algo que deve ser praticado diariamente como resistência. Mas não parece ser fácil. Ouvimos “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo” se repetindo como um bordão fatalista. É possível imaginar outros mundos?
Quando imaginar é invenção de um indivíduo, uma construção do zero que se origina em um único cérebro como capacidade subalterna à lógica cognitiva; quando mundo é uma narrativa que não é percebida como narrativa, mas como espaço e modo-de-ser-no-espaço imutáveis e independentes, imaginar outros mundos como caminho realmente parece impossível. Pode ser um primeiro passo, uma ignição necessária para passar a trabalhar com outras fontes de energia Mas na visão desaterrada a coisa sempre se corrompe ou então se esgota: burnout, desilusão.
Tem muita gente ressignificando o imaginar. E muita gente também decolonizando o mundo. Mas queria aqui propor uma outra ideia, partindo de que, para uma transformação profunda, precisaremos de toda a diversidade de ideias e ações que a Vida permitir. Tem horas que acho ousado uma mudança de terminologia, mas aí sempre me lembro de que já está dito:
Então só canto junto.
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Sonhar,
para que fique bem claro que não se trata de algo subordinado hierarquicamente a uma lógica-padrão de realidade.
porque sonhar parece ser propriedade emergente, que deriva das infinitas relações entre as manifestações da vida mas não pertence a nenhuma delas. ou parece ser a trama protomítica a partir da qual todas essas relações se tecem. ou as duas coisas. porque sonhar é da própria rede infinita de relações, é algo que nos atravessa e é através de nós, algo do qual fazemos parte. porque sonhar não cabe no “eu”. porque sonhar é imaginar e ser imaginade pela Vida.
porque, estejamos mais ou menos lúcides, mais ou menos observantes e presentes, em sono ou vigília, sonhar é algo que já é, para o qual basta abertura e correta relação.
a Terra,
que é imediata, sensorial e específica. não é um conceito, teoria. não tem ideologia. não complica. eu conheço a Terra, é um pé de mostarda. uma borboleta-monarca-do-sul. um stratocumulus. o barulho da fábrica pelas manhãs. a sacola plástica tremulando num pequizeiro na beira da estrada. você conhece a Terra, ela está nos seus olhos, na sua boca, nas suas mãos. como um pé de banana que dá banana, não há como estar plenamente enraizade na Terra e não florescer e oferecer exatamente o melhor a ser oferecido a cada momento.
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Um mundo imaginado a partir de um controle individual foi o que nos trouxe até aqui e é o que nos mantém aqui. É também esse o mundo que está se autodestruindo. Mas é possível libertar a Terra do mundo. E é urgente — pois ela tem coração e respira.
Sonhar a Terra é caminho. Um caminho antigo traduzido em mitos e demonstrado em métodos pela quase totalidade de nossos ancestrais, humanos, animais, seres unicelulares, a matéria em auto-organização inteligente. Sonhar a Terra é da inteligência da Vida em si, portanto é algo que se faz aqui e agora.
E é o que podemos começar a fazer juntes.
Shantideva, O Caminho do Bodisatva.