n.3 . a última que morre
O jarro tinha dentro de si todos os males do mundo — foi assim que a história chegou até mim. Pandora, a que tudo dá, antes louvada como deusa fértil da terra, era aqui a primeira mulher mortal, criada para espalhar desgraça entre os homens. Pelas suas mãos, o vaso foi aberto e rapidamente o mundo foi tomado por infortúnios, imprevisíveis e selvagens. Fechada a tampa do jarro, resta apenas uma, apenas ela — sob as frias sombras do barro, a esperança.
Não sinto que cabe esmiuçar o leque de conjecturas a respeito das intenções misteriosas dos deuses, decifrar o que a esperança fazia na caixa dos males, se ela — e apenas ela — ter sido mantida nas mãos dos mortais foi uma concessão misericordiosa ou uma punição ainda maior. Fato é que ela ficou, fechada. Certamente viva, mas enquanto os males voavam livres e transformavam as realidades que tocavam, esta esperança seguiu cuidadosamente mantida inerte e imutável pelas mãos dos homens, assombrados diante do imprevisível. E Pandora, antes aquela que envia dádivas, tornou-se víbora.
Desde muito tempo as mulheres são detestadas quando abrem a visão estreita dos homens para as dores do mundo. Quando tratam da terra, dos seres e das circunstâncias da terra, do sangue, do parto e da morte, do chão do cotidiano, quando conversam com serpentes. Mulheres que abrem a visão para a metamorfose incessante da terra são detestadas por quem quer continuar vendo o que está como está, indefinidamente. Tem sido assim.
Mas mulheres seguem abrindo a visão dos homens para os males do mundo, mais antigos que o tempo mas sempre renovados, e com a lucidez possível apenas a partir de uma profunda intimidade com o impermanente e imprevisível, declaram: essa esperança caduca já não nos serve mais.
Os adultos ficam dizendo: “devemos dar esperança aos jovens”. Mas eu não quero a esperança de vocês. Eu não quero que vocês tenham esperança. Eu quero que vocês entrem em pânico. Quero que vocês sintam o medo que eu sinto todos os dias. E quero que vocês ajam. Quero que ajam como agiriam em uma crise. Quero ajam como se a nossa casa estivesse pegando fogo, porque está. — Greta Thunberg, 2019
É preciso destemor para negar a esperança estática que os homens têm retido em sua caixa por milênios, a esperança “âncora da alma, firme e segura” (Hb 6:19), a alma eternamente imóvel num mundo mutável. A esperança condicionada que, diante de um cenário otimista, não age porque basta esperar para alcançar e, confrontada com o inevitável, não age porque não há solução simples possível. Âncora densa e enferrujada, ela continua sendo mantida viva simplesmente por ser a última que morre. Porque se ela morrer nada mais será como é. Porque sem ela é o fim do mundo. Mas será que não há visões ignorantes, mundos moribundos que já não podem se tornar adubo?
Eu abro agora a tampa do jarro.
E a esperança complacente com a apatia, que há eras espera, apenas, precariamente mantida viva por aparelhos, que ela seja liberada, que seu espírito ascenda, e que ascenda junto a ela o espírito deste mundo agonizante. Que alcancem o plano dos sonhos, e que se dissolvam no tecido imaginativo da Vida, que se façam matéria-prima para que uma nova esperança e um novo mundo possam renascer. E recomecemos daqui, sem expectativas de sustentar nada. Recomecemos na energia e na liberdade de ação de uma realidade que nada aprisiona, nada encaixota, apenas permeia a tudo como uma grande respiração.
Como tudo que pertence ao tempo do mito e do sonho, o renascimento da esperança acontecerá, está acontecendo e já aconteceu. E essa esperança renasce não com braços de ferro forjado mas com asas, e foi e será e é tão selvagem e assombrosa quanto os males do mundo, que lhe são tão íntimos.
Assim, ela renasce em Paulo Freire, esperança-verbo que se levanta e vai; e renasce verde e delicada em Clarice; e renasce em Greta Thunberg — “E sim, nós precisamos sim de esperança. Mas a coisa que precisamos mais que esperança é ação. A partir do momento em que começamos a agir, a esperança está em todo lugar. Então, em vez de procurar esperança, procure ação. Assim, e somente assim, a esperança virá.”
E renasce em qualquer pessoa em tempos de colapso do sistema-Terra que, consciente de que não há mais volta e que as alternativas menos severas já ficaram para trás, e consciente de que ela sempre será individualmente incapaz de produzir qualquer “resultado”, segue agindo, recriando o mundo a partir de sua visão e ações, e das capacidades de constante mudança, de relação e de auto-organização que lhe são próprias simplesmente por ela ser Vida.
E renasce no picão-preto que germina, floresce e oferece sua medicina no canto do asfalto, sem contar com conjunturas mais férteis e úmidas. E na embaúba cometendo a ousadia de regenerar a floresta ao brotar espontaneamente num vaso na varanda. E nos peixes ameaçados subindo o rio sujo na piracema. E em todos os seres que seguem pela beleza e o mistério de seguir.
Reconheço-me Vida quando com ela eu canto, com a esperança — não a que morre por último, mas aquela que constantemente renasce, em todos os éons e lunações, em todas as casas e cavernas, nos ares e mares indelimitados, nos verbos e olhares, e em todos os corações.
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